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Abraços,

Sérgio

terça-feira, 8 de junho de 2010

1992: a redescoberta da Natureza


Com a presença do homem sobre a Terra, a natureza está, sempre, sendo redescoberta, com a criação da natureza social. É a história de uma rutura progressiva entre o homem e o entorno, acelerada pela mecanização. Mediante a tecnociência, a natureza artificializada alcança seu estágio supremo, onde a natureza e o homem tornam-se reciprocramente hostis. Com a globalização da economia, da política e da cultura, não há mais relações totalizantes entre a sociedade e o meio. A natureza tecnicizada se impõe como algo abstrato, exigindo um discurso.
Milton Santos
A questão do meio ambiente é um aspecto dessa evolução e reclama um estudo abrangente, para permitir uma correta interpretação. Para alcançar essa interpretação, a universidade deve fugir dos raciocínios técnicos e conformistas e enfrentar o entendimento do mundo como um todo.
A universidade escolhe, ela própria, os seus grandes momentos, sem sujeição aos relógios telúricos, nem aos cronômetros do mercado ou do Estado. Este reencontro é um desses momentos, destinado a celebrar a vontade comum da renovação e da continuidade. E isso mesmo o que significa pertencer a uma geração e é essa a grande distinção da universidade, pois ela reúne homens e mulheres de idades diversas, todos dedicados a viver o seu tempo e a interpretá-lo.
Tenho a consciência desta oportunidade e da responsabilidade que encerra. Esta é, sobretudo, uma ocasião de crítica e autocrítica. A autocrítica é - no caminho - a busca de revisão do caminho. A crítica é o próprio caminho, uma visão, sempre a se renovar, do mundo, que espanta as imagens batidas e os conceitos surrados e propõe novas interpretações, novos métodos, novos temas. Nesse sentido, todos estamos chamados a filosofar e a filosofia não é mais um privilégio dos filósofos.
O tema " 1992: a redescoberta da Natureza" é um desses que a atualidade nos impõe, mas deve ser abordado cautelosamente, já que nesse assunto a força das imagens ameaça aposentar prematuramente os conceitos. Por isso, cumpre, urgentemente, retomá-los e, eventualmente, refazê-los. Nessa tarefa, não nos devemos deixar circunscrever pelos ditames de uma pesquisa automática, instrumentalizada, nem aceitar o pré-requisito de nenhum enunciado. Somente a história nos instrui sobre o significado das coisas. Mas é preciso sempre reconstruí-la, para incorporar novas realidades e novas idéias ou, em outras palavras, para levarmos em conta o tempo que passa e tudo muda.
É sempre perigoso buscar reduzir a história a um esquema. Mas aqui a simplificação se impõe, com todos os seus riscos, para apontar o início de um processo e o seu estágio atual.
Referimo-nos ao que podemos chamar de Sistemas da Natureza sucessivos, onde esta é continente e conteúdo do homem, incluindo os objetos, as ações, as crenças, os desejos, a realidade esmagadora e as perspectivas.
Com a presença do homem sobre a Terra, a Natureza esta sempre sendo redescoberta, desde o fim de sua historia natural e a criação da natureza social, ao desencantamento do mundo, com a passagem de uma ordem vital a uma ordem racional. Mas agora, quando o natural cede lugar ao artefato e a racionalidade triunfante se revela através da Natureza instrumentalizada, esta, portanto domesticada, nos é apresentada como sobrenatural.
A questão que se colocam os filósofos é a de distinguir entre uma Natureza mágica e uma Natureza racional. Em termos quantitativos ou operacionais, a tarefa certamente é possível. Mas é talvez inútil buscar o momento de uma transição. No fundo, o advento da ciência natural (Capei, 1985, p. 19) ou o triunfo da ciência das máquinas não suprimem, na visão da Natureza pelo homem, a mistura entre crenças, mitigadas ou cegas, e esquemas lógicos de interpretação. A relação entre teologia e ciência, marcante na Idade Média, ganha novos contornos. " A magia, ' o poder de fabulação', como diz Bergson, é uma necessidade psicológica, tal corno a razão...". Os sistemas lógicos evoluem e mudam, os sistemas de crenças religiosas são recriados paralelamente à evolução da materialidade e das relações humanas e é sob essas leis que a Natureza vai se transformando.
Da Natureza amiga à Natureza hostil
Em resumo, essa história pode, assim, ser escrita em seu momento original e em sua resultante atual.
Ontem, o homem escolhia, em torno, naquele seu quinhão de Natureza, o que lhe podia ser útil para a renovação de sua vida: espécies animais e vegetais, pedras, árvores, florestas, rios, feições geológicas.
Esse pedaço de mundo é, da Natureza toda de que ele pode dispor, seu subsistema útil, seu quadro vital. Então há descoordenação entre grupos humanos dispersos, enquanto se reforça uma estreita cooperação entre cada grupo e o seu meio: não importa que as trevas, o trovão, as matas, as enchentes possam criar o medo: é o tempo do Homem amigo e da natureza amiga. Assim como Michelet escreveu no Tableau de la France (1833): "A natureza é atroz, o homem é atroz, mas parecem entender-se".
A história do homem sobre a Terra é a história de uma rutura progressiva entre o homem e o entorno. Esse processo se acelera quando, praticamente ao mesmo tempo, o homem se descobre como indivíduo e inicia a mecanização do Planeta, armando-se de novos instrumentos para tentar dominá-lo. A Natureza artificializada marca uma grande mudança na história humana da Natureza. Agora, com a tecnociência, alcançamos o estágio supremo dessa evolução.
Enquanto esperamos o "dia eterno" com auroras boreais artificiais em todas as latitudes, na previsão de J. Ellul (1954), já conhecemos a criação humana de tempestades, cataclismos, tremores de terra, hecatombes, fantasticamente artificiais, fantasticamente incompreensíveis (Ettore Sottsass, 1991, p. 40).
O homem se torna fator geológico, geomorfológico, climático e a grande mudança vem do fato de que os cataclismos naturais são um incidente, um momento, enquanto hoje a ação antrópica tem efeitos continuados, e cumulativos, graças ao modelo de vida adotado pela humanidade. Daí vêm os graves problemas de relacionamento entre a atual civilização material e a Natureza. Assim, o problema do espaço humano ganha, nos dias de hoje, uma dimensão que ele não havia obtido jamais antes. Em todos os tempos, a problemática da base territorial da vida humana sempre preocupou a sociedade. Mas nesta fase atual da história tais preocupações redobraram, porque os problemas também se acumularam.
No começo dos tempos históricos, cada grupo humano construía seu espaço de vida com as técnicas que inventava para tirar do seu pedaço de Natureza os elementos indispensáveis à sua própria sobrevivência. Organizando a produção, organizava a vida social e organizava o espaço, na medida de suas próprias forças, necessidades e desejos. A cada constelação de recursos correspondia um modelo particular. Pouco a pouco esse esquema se foi desfazendo: as necessidades de comércio entre coletividades introduziam nexos novos e também novos desejos e necessidades e a organização da sociedade e do espaço tinha de se fazer segundo parâmetros estranhos às necessidades íntimas ao grupo.
Essa evolução culmina, na fase atual, onde a economia se tornou mundializada, e todas às sociedades terminaram por adotar, de forma mais ou menos total, de maneira mais ou menos explícita, um modelo técnico único que se sobrepõe à multiplicidade de recursos naturais e humanos (Santos, 1991).
É nessas condições que a mundialização do Planeta unifica a Natureza. Suas diversas frações são postas ao alcance dos mais diversos capitais, que as individualizam, hierarquizando-as segundo lógicas com escalas diversas. A uma escala mundial corresponde uma lógica mundial que, nesse nível, guia os investimentos, a circulação das riquezas, a distribuição das mercadorias. Cada lugar, porém, é ponto de encontro de lógicas que trabalham em diferentes escalas, reveladoras de níveis diversos, às vezes contrastantes, na busca da eficacia e do lucro, no uso das tecnologias e do capital e do trabalho.
Se o modelo técnico se tornou uniforme e a força motora - a mais-valia em nível mundial - é também única, os resultados são os mais disparatados. É assim que se definem e redefinem os lugares: como ponto de encontro de interesses longínquos e próximos, mundiais e locais, manifestados segundo uma gama de classificações que está sempre se ampliando e mudando.
Sem o homem, isto é, antes da história, a Natureza era una. Continua a sê-lo, em si mesma, apesar das partições que o uso do Planeta pelos homens lhe infligiu. Agora, porém, há uma enorme mudança. Una, mas socialmente fragmentada, durante tantos séculos, a Natureza é agora unificada pela história, em benefício de firmas, estados e classes hegemônicas. Mas não é mais a Natureza amiga, e o Homem também não é mais seu amigo.
A Natureza abstrata
Dentro do atual sistema da Natureza, o homem se afasta em definitivo da possibilidade de relações totalizantes com o seu próprio quinhão do território. De que vale indagar qual a fração da Natureza que cabe a cada indivíduo ou cada grupo, se o exercício da vida exige de todos uma referência constante a um grande número de lugares? Ali mesmo, onde moro, freqüentemente não sei onde estou. Minha consciência depende de um fluxo multiforme de informações que me ultrapassam ou não me atingem, de modo que me escapam as possibilidades hoje tão numerosas e concretas de uso ou de ação. O que parece estar ao alcance de minhas mãos é concreto, mas não para mim. O que me cabe são apenas partes desconexas do todo, fatias opulentas ou migalhas. Como me identifico, assim, com o meu entorno? Sem dúvida, pode-se imaginar o indivíduo como um ser no mundo, mas pode-se pensar que há um homem total em um mundo global?
Sem dúvida, o trabalho, entendido como sistema, é cada vez menos local e é cada vez mais universal. Na medida, porém, em que a mais-valia igualmente se torna mundial (essa lei do valor à escala universal que, invisível, proíbe medidas) ocultam-se os parâmetros do meu próprio valor que, assim, se reduz. Aqui nos referimos ao valor-trabalho aplicado à produção mundializada, medido em termos de dinheiro.
Fomos rodeados, nestes últimos 40 anos, por mais objetos do que nos precedentes 40 mil. Mas sabemos muito pouco sobre o que nos cerca. A Natureza tecnicizada acaba por ser uma Natureza abstrata, já que as técnicas, no dizer de G. Simondon (1958), insistem em imitá-la e acabam conseguindo.
Os objetos que nos servem são, cada vez mais, objetos técnicos, criados para atender a finalidades específicas. As ações que contêm são aprisionadas por finalidades que, raramente, nos dizem respeito.
Vivemos em um mundo exigente de um discurso, necessário à inteligência das coisas e das ações. É um discurso dos objetos, indispensável ao seu uso, e um discurso das ações, indispensável à sua legitimação. Mas ambos esses discursos são, freqüentemente, tão artificiais como as coisas que explicam e tão enviesados como as ações que ensejam.
Sem discurso, praticamente entendemos nada. Como a inovação é permanente, todos os dias acordamos um pouco mais ignorantes e indefesos. A rainha Juliana, da Holanda, assistindo à demonstração de um computador eletrônico em uma exposição em Amsterdam, exclamou: "Não posso entender isso. Nem posso entender as pessoas que entendem isso" (W. Buckinggam, 1961, p.27).
A técnica é a grande banalidade e o grande enigma, e é como enigma que ela comanda nossa vida, nos impõe relações, modela nosso entorno, administra nossas relações com o entorno.
Se, ontem, o homem se comunicava com o seu pedaço da Natureza praticamente sem mediação, hoje, a própria definição do que é esse entorno, próximo ou distante, o local ou o mundo, é cheia de mistérios.
Agora, que todas as condições de vida profundamente enraizadas estão sendo destruídas (A. Wellmer, 1974), aumenta exponencialmente a tensão entre a cultura objetiva e a cultura subjetiva e, do mesmo modo, se multiplicam os equívocos de nossa percepção, de nossa definição e de nossa relação com o meio.
Estaremos de volta ao mundo mágico, onde o fantasioso, o fantástico, o fantasmagórico prometem tomar o lugar do que é lógico e o engano pode se apresentar como o verdadeiro?
Diante de nós temos, hoje, possível (e freqüente), com a falsificação do evento, o triunfo da apresentação sobre a significação, ainda que reclamando uma ancoragem. Na questão do meio ambiente, que revela essa faceta da história contemporânea, essa ancoragem chama-se buraco de ozônio, efeito-estufa, chuva ácida; e a ideologia se corporifica no imenso território da Amazônia.
Num mundo assim feito, não há propriamente interlocutores, porque só existe comunicação unilateral. Não há diálogo, porque as palavras nos são ditadas e as respostas previamente catalogadas. Trata-se de uma fala funcional e o caráter hipnótico da comunicação é a contrapartida do " estiolamento da linguagem pela perda progressiva da criatividade" (E. Carneiro Leão, 1987, p. 20).
No dizer de Marcuse (1964, p. 95), essa linguagem "constantemente impõe imagens e contribui, de forma militante, contra o desenvolvimento e a expressão de conceitos". Já que "o conceito é absorvido pela palavra", "espera-se da palavra que apenas responda à reação publicizada e estandardizada. A palavra torna-se um clichê e, como clichê, governa o discurso ou o texto; a comunicação, desse modo, afasta o desenvolvimento genuíno da significação" (p. 85).
A Natureza da mídia
A mediação interessada, tantas vezes interesseira, da mídia, conduz, não raro, à doutorização da linguagem, necessária para ampliar o seu crédito, e à falsidade do discurso, destinado a ensombrecer o entendimento. O discurso do meio ambiente é carregado dessas tintas, exagerando certos aspectos em detrimento de outros, mas, sobretudo, mutilando o conjunto.
O terrorismo da linguagem (H. Lefebvre, 1971, p. 56) leva a contraverdades mediáticas, conforme nos ensina B. Kayser (1992). Este autor nos dá alguns exemplos, convidando-nos a duvidar do próprio fundamento de certos discursos das mídias. Por exemplo, "Sobre o aquecimento da terra e o efeito-estufa. Pode-se estar certo de que, apesar do contínuo crescimento do teor em CO2 da atmosfera desde os começos da era industrial, o clima não conheceu aquecimento no século 20. As normais medidas entre 1951 e 1980, em relação às do período 1921-1950, mostram, ao contrário, uma baixa (não significativa) de -0,3°. De qualquer modo, a evolução é muito lenta, e dezenas de anos são necessários para que se registre uma mudança climática. O apocalipse anunciado - fusão de glaciares, elevação do nível do mar, etc. - não é seguramente para amanhã. Se é necessário lutar contra a poluição, a degradação do meio ambiente, devemos fazê-lo com os olhos abertos, com base em análises científicas e não nos limitando a gritar: 'está pegando fogo!'".
Se antes a Natureza podia criar o medo, hoje é o medo que cria uma Natureza mediática e falsa, uma parte da Natureza sendo apresentada como se fosse o todo.
O que, em nosso tempo, seja talvez o traço mais dramático, é o papel que passaram a obter, na vida quotidiana, o medo e a fantasia. Sempre houve épocas de medo. Mas esta é uma época de medo permanente e generalizado. A fantasia sempre povoou o espírito dos homens. Mas agora, industrializada, ela invade todos os momentos e todos os recantos da existência a serviço do mercado e do poder e constitui, juntamente com o medo, um dado essencial de nosso modelo de vida.
O império universal do medo e o império universal da fantasia são criações sobrepostas. Já Freud (1920) escrevia que "A criação do domínio mental da fantasia tem reprodução na criação de ' reservas' e ' parques naturais' em lugares onde as incursões da agricultura, do trânsito ou da indústria ameaçam transformar... rapidamente a terra em alguma coisa irreconhecível. A ' reserva' se destina a manter o velho estado de coisas que foram lamentavelmente sacrificadas à necessidade em todos os outros lugares; ali, tudo pode crescer e expandir-se à vontade, inclusive o que é inútil e até o que é prejudicial. O domínio mental da fantasia é também uma reserva assim recuperada das invasões do princípio da realidade" (Leo Marx, 1976, p. 12).
Quanto ao medo, lembra-nos Ramsey Clark que ele "já nos induz a pensar mais na incolumidade do que na justiça" e Furio Colombo (1973, p. 56) utiliza esse testemunho para explicar as violações da lei cada vez mais freqüentes, no mundo, pelos próprios órgãos legais.
É a mídia o grande veículo desse processo ameaçador da integridade dos homens. Virtualmente possível, pelo uso adequado de tantos e tão sofisticados recursos técnicos, a percepção é mutilada, quando a mídia julga necessário, através do sensacional e do medo, captar a atenção. Muitos movimentos ecológicos, cevados pela mídia, destroem, mutilam ou reprimem a Natureza...
Quando o meio ambiente, como Natureza-espetáculo, substitui a Natureza histórica, lugar de trabalho de todos os homens, e quando a Natureza cibernética ou sintética substitui a Natureza analítica do passado, o processo de ocultação do significado da história atinge o seu auge. É, também, desse modo, que se estabelece uma dolorosa confusão entre sistemas técnicos, Natureza, sociedade, cultura e moral.
Bradamos contra certos efeitos da exploração selvagem da Natureza. Mas não falamos bastante da relação entre sua dominação tecnicamente fundada, as forças mundiais que insistem em manter o mesmo modelo de vida e o fato já apontado, desde os anos 50, por G. Friedmann, de que a tecnicização está levando ao condicionamento anárquico do homem moderno. A racionalização da existência, tão dependente das relações atuais entre técnica e sociedade, é um dos seus pilares.
Ontem, a técnica era submetida. Hoje, conduzida pelos grandes atores da economia e da política, é ela que submete. Onde está a Natureza servil? Na verdade, é o homem que se torna escravizado, num mundo em que os dominadores não querem se dar conta de que suas ações podem ter objetivos, mas não têm sentido. O imperativo da competitividade, uma carreira desatinada sem destino, é o apanágio dessa dissociacão entre moralidade e ação que caracteriza a implantação em marcha da chamada nova ordem mundial, onde os objetivos humanos e sociais cedem a frente da cena, definitivamente, a preocupações secamente econômicas, com papel hoje onímodo da mercadoria, incluindo a mercadoria política. Não só a Natureza é apresentada em frangalhos, mas também a moral, e, na ausência de um sentido comum, já dizia o Marx da Miséria da filosofia, " é fácil inventar causas místicas".
Não basta, porém, o criticismo, para exorcizar esses perigos que nos rondam. Já em 1949, Georges Friedmann nos aconselhava a considerar que esse meio técnico " é a realidade com a qual nos defrontamos" e que, por isso, "é preciso estudá-la com todos os recursos do conhecimento e tentar dominá-la e humanizá-la".
A universidade e a ordem atual das coisas
Avulta, neste ponto, o papel da Universidade nessa busca do conhecimento. Mas essa tarefa vem sendo ameaçada exatamente pelo prestígio crescente do cientismo e pela importância que este vem ganhando entre os que, atualmente, dirigem o ensino superior.
Num mundo em que o papel das tecnociências se torna avassalador, um duplo movimento tende a se instalar. De um lado, as disciplinas incumbidas de encontrar soluções técnicas, as reclamadas soluções práticas, recebem prestígio de empresários, políticos e administradores e desse modo obtêm recursos abundantes para exercer seu trabalho. Basta uma rápida visita às diferentes faculdades e institutos para constatar a disparidade dos meios (instalações, material, recursos humanos) segundo a natureza mais ou menos mercantil e pragmática do labor desenvolvido. De outro, o prestígio gerado pelo processo de racionalização perversa da universidade é o melhor passaporte para os postos de comando.
Desse modo, um grave obstáculo a que se instale um processo de reflexão conseqüente é o contraste crescente, na Universidade, entre os seus grandes momentos e esse cotidiano tornado miserável pela ameaça já em marcha de uma gestão técnica e racionalizadora, que leva ao assassinato da criatividade e da originalidade.
Em nome do cientismo, comportamentos pragmáticos e raciocínios técnicos, que atropelam os esforços de entendimento abrangente da realidade, são impostos e premiados. Numa universidade de resultados, é assim escarmentada a vontade de ser um intelectual genuíno, empurrando-se mesmo os melhores espíritos para a pesquisa espasmódica, estatisticamente rentável. Essa tendência induzida tem efeitos caricatos, como a produção burocrática dessa ridícula espécie dos pesquiseiros, fortes pelas verbas que manipulam, prestigiosos pelas relações que entretêm com o uso dessas verbas, e que ocupam assim a frente da cena, enquanto o saber verdadeiro praticamente não encontra canais de expressão.
Como uma racionalidade burocrática perversa ameaça invadir até mesmo aqueles recantos que não sabem viver sem espontaneidade, corremos o risco de assistir ao triunfo de uma ação sem pensamento sobre um pensamento desarmado.
Nessas condições, devemos reconhecer, toda reação é difícil e a muitos pode aparecer como um verdadeiro suicídio, já que a carreira universitária não mais precisará ser uma carreira acadêmica. O grande risco é que a recusa à coragem e a falta de crença se convertam em rotina. Como nos libertar, então, da internalização da violência de que fala Horkheimer (1974), ou da "sujeição das almas" apontada por Lenoble (1990, p. 77) ao se referir à maneira atual de representar a Natureza? Lembremos Heisenberg (1969) ao dizer que "... na ciência, o objeto de investigação não é a Natureza em si mesma, mas a Natureza submetida à interrogação dos homens". Não se trata, aqui, de uma interrogação unilateral, técnica, menor, mas de uma interrogação abrangente, sequiosa de entendimento, uma tarefa intelectual.
Outrora, os intelectuais eram homens que, na universidade ou fora dela, acreditavam nas idéias que formulavam e formulavam idéias como uma resposta às suas convicções. Os intelectuais, dizia Sartre, casam-se com o seu tempo e não devem traí-lo. Foi desse modo que o filósofo francês criticava a indiferença de Balzac face às jornadas de 48 e a incompreensão de Flaubert diante da Comuna (L. Bassets, 1992, p. 15).
Que fazer quando na própria Casa fundada para o culto da Verdade, a organização do cotidiano convida a deixar de lado o que é importante e fundamental?
Num discurso endereçado à agremiação norte-americana de economistas, um economista-filósofo, Kenneth Boulding (1969), ante os descaminhos já clamorosos de sua profissão, reclamava a necessidade de heroísmo, para pôr fim ao conformismo, fugir aos raciocínios técnicos, recusar a pesquisa espasmódica, abandonar a vida fácil e, afinal, enfrentar o entendimento do mundo.
O empenho com que nos convocam para tratar, seja como for, as questões do meio ambiente, sem que um espaço maior seja reservado a uma reflexão mais profunda sobre as relações, por intermédio da técnica, seus vetores e atores, entre a comunidade humana assim mediatizada e a Natureza, assim dominada, é típico de uma época e tanto ilustra os riscos que corremos, como a necessidade de, em todas as áreas do saber, agir com heroísmo, se desejamos poder continuar a perseguir a verdade.
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Milton Santos é professor titular de Geografía Humana da Universidade de São Paulo (FFLCH). Ensinou em diversas universidades estrangeiras, como a Sorbonne (Paris), Columbia (N. York), Central (Caracas), Dar-es-Salaam (Tanzânia) e é autor de inúmeros livros, em diversos idiomas, dentre os quais Metamorfoses do espaço habitado, Hucitec, São Paulo, 1991 (2ª ed.) e Espaço e método, Nobel, São Paulo, 1992 (3ª ed.).
Aula inaugural da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em 10 de março de 1992.
Fonte: Scielo – www.scielo.br

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