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Sérgio

terça-feira, 18 de maio de 2010

Barbárie e Humanização, no Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago

 

Barbárie e Humanização, no Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago

Lívia Lemos Duarte

(mestranda em Ciência da Literatura, Semiologia, UFRJ)

Resumo: Nesse trabalho, pretendemos analisar como se configura e o que representa a cegueira do "Ensaio sobre a Cegueira", de Saramago. Ao romperem-se os limites entre civilização e barbárie, a violência é instaurada como ordem vigente na cidade fictícia. Nesse sentido, destacamos alguns momentos e personagens da narrativa que atentam para a necessidade de humanização frente ao processo de cegueira e de caos vivenciados pelos personagens do Ensaio.

Existe no Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago uma diferença sutil entre as atitudes de olhar e de ver. O olhar no sentido de percepção visual, uma conseqüência física do sentido humano da visão. O ver como uma possibilidade de observação atenciosa, de exame daquilo que nos aparece à vista. Provavelmente é nesse sentido que o autor traz como epígrafe do livro a frase: Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. O reparar, portanto, não é nada mais do que se libertar da superficialidade da visão para aprofundar o interior do que é o homem e, finalmente, conhecê-lo.

Nesse sentido, a narrativa em questão promove um jogo entre desumanização e humanização ao trazer passagens, em que se desce aos mais baixos extremos da barbárie, mas, sempre atentando para momentos de solidariedade e de compaixão, ou seja, para momentos em que o reparar se torna fundamental. Tendo em vista esse jogo, nesse trabalho, pretendo analisar como se configura e o que representa a cegueira do Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago, assim como destacar alguns momentos e personagens da narrativa que atentam para a necessidade de humanização frente ao processo de cegueira e de caos vivenciados pelos personagens do Ensaio.

Como será esclarecido adiante, ao utilizar a cegueira como uma alegoria, o autor configura o estado de crise por que passam as sociedades capitalistas do século XX, nas quais, freqüentemente, os limites entre civilização e barbárie são rompidos.

Tomando por base a obra O Mal-Estar na Civilização, de Freud entende-se que a evolução das sociedades humanas não é nada mais do que a representação do conflito entre os instintos de vida e de destruição presentes no homem. O fato de que se combinem indivíduos isolados, depois famílias, raças e povos numa grande unidade representa, segundo Freud (2002), um grande esforço da humanidade, pois, em nome da conjunção, da civilização, ela tem de reprimir seu instinto latente de destruição.

No Ensaio sobre a Cegueira, vemos situações que revelam claramente uma ruptura no limite entre os instintos de civilização e de autodestruição apresentados por Freud. A cegueira branca, que acomete os personagens da narrativa, serve como estopim para que o horror tome conta da cidade fictícia. Tal situação é agravada pela desintegração da vida humana articulada e, conseqüentemente, pelo estabelecimento da alienação entre os indivíduos. Nesse sentido, a cegueira apresentada por Saramago pode ser encarada como um sintoma da alienação do homem em relação a ele próprio.

Essa interpretação para a cegueira pode ser analisada sob a perspectiva de Marx[1], na medida em que for encarada como um resultado do avanço irrefreado do capitalismo, que faz com que os homens percam a consciência de si, se deformem, se massifiquem e se barbarizem, tornando-se semelhante a uma mercadoria. Com isso, nas palavras de Marx, com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens.[2]

Seguindo o conceito de alienação como desumanização, é possível dizer que a alienação é freqüente em sociedades marcadas pela imposição de hierarquias e pela dominação através do poder. Entenda-se poder segundo a definição de Foucault, ou seja, como uma rede produtiva, que para ser mantida conta com mecanismos de força aceitos pela sociedade (FOUCAULT, 2001). A questão a ser entendida é como que o poder possui essa aceitação. De fato, os homens não se submeteriam às incoerências de uma força se não a tivessem como verdadeira. A idéia de verdade, a verdade como lei, como conjunto de artifícios regulados, segundo Foucault, é a própria expressão do poder. Ela seria a chave para o entendimento da cegueira do Ensaio de Saramago, à medida que ambas – verdade como lei e cegueira como alienação- são fatores presentes em sociedades capitalistas.

Os personagens da narrativa cegos ficaram, no final dela, voltaram a ver, mas mantiveram-se cegos funcionais, já que estavam submetidos ao regime do poder, que impõe regras, induz efeitos e garante a reprodução e a manutenção da cegueira, da alienação. Não seria possível, portanto, deixar de estar cego se o poder da verdade não fosse desvinculado das formas de hegemonia.

Em o Ensaio sobre a Cegueira, no momento em que o mal branco começa a se alastrar pela cidade, há um indício de que são excedidos os domínios do controle, o que faz com que as autoridades da cidade fictícia tomem a atitude de confinar os cegos num manicômio desativado.

Tal manicômio pode ser visto como um espaço de poder da narrativa, na medida em que ele é utilizado como controlador e regulador do comportamento dos cegos. Os que foram enviados ao manicômio são postos ao esquecimento, sendo, vez ou outra, interrompidos pelo som de um alto-falante instalado no manicômio, que ditava as ordens do Governo, o que nos revela como, em estados de crise, sempre andam juntos a violência e o esquecimento. Nesse sentido, o vínculo entre verdade e poder, tal como apresentado neste trabalho, é capaz de gerar cegueira social, na medida em que os indivíduos não promovem contestações a respeito desse vínculo. Dessa maneira, a narrativa em questão gera reflexões a respeito da falta de consciência humana em relação à ligação entre a verdade e os mecanismos de poder. Em vista disso, as regras do que é humano são quebradas, em nome do abuso da força pelo mais forte, fazendo com que o instinto de sobrevivência tome conta do próprio homem.

Ao saírem do confinamento no manicômio, os cegos – expostos e desorganizados- têm de se acostumar à nova realidade da cidade modificada pela cegueira. Em determinado momento, vagando pelas ruas da cidade, os cegos conversam sobre a necessidade de organização como a melhor alternativa para fugir da morte, pois como reflete um personagem do Ensaio, organizar-se já é de certa maneira, começar a ter olhos (p.282). Entenda-se por organização uma forma dos cegos se conscientizaram sobre seu estado e resistirem a ele. No entanto, essa conscientização não ocorre e os cegos parecem não dar importância à degradação a que estão submetidos.

Resta, portanto, na nova realidade imposta pela cegueira, a atitude de reparar o outro como um caminho para a humanização frente à desumanização, como uma volta à percepção do outro sem as amarras do ofuscamento, causado pela alienação.

Assim é com o aparecimento do personagem escritor, que, mesmo cego, continua a exercer a atividade da escrita. Não podemos deixar de ver nesse fato a idéia da escrita como instrumento crucial para resistir ao esquecimento, já que ela é um meio pelo qual os homens podem perpetuar sua memória e formar sua consciência. Ao trazer, em sua narrativa, um personagem preocupado com o registro escrito, Saramago revela sua preocupação com a história humana e com a permanência da memória perante o esquecimento promovido pela barbárie.

O velho da venda preta é um personagem que, simbolicamente, representa aquele que possui sabedoria e poder de análise, ao refletir a respeito da cegueira e do caos instalado. Além da velhice, que lhe acumula experiência, o personagem usa uma venda, carregada de significação, pois, por ser um símbolo de cegueira, é também uma forma de mostrar que o personagem está imune à superficialidade das aparências físicas. Isso faz com que ele se interiorize, pois sua venda tapa o vazio em seu rosto, deixado pela perda de um olho, como também resguarda o personagem de julgamentos baseados no aspecto corporal. Isso é ainda mais reforçado pelo fato do velho da venda preta sofrer de catarata no olho que lhe resta. Velho, cego de um olho e ainda vítima de catarata, o velho da venda preta está fechado ao mundo corrompido pelas máscaras sociais e, embora vítima da cegueira branca, conserva consciência sobre o horror a que ele e os demais cegos estão submetidos.

Outro personagem crucial para a narrativa é a mulher do médico, que por ser a única que não cega, testemunha visualmente a degradação, trazida pela cegueira, tomando papel de líder e de defensora dos demais, em meio à crise a que são postos. Ao analisar a trajetória percorrida pela mulher do médico na narrativa, constata-se a grande parcela de solidariedade desprendida por ela em relação aos demais cegos, tanto nos momentos passados dentro do manicômio como no retorno à cidade. A mulher do médico possui um valor particular, pois, além de ser a única que manteve o sentido da visão, conserva sensibilidade e compaixão, mesmo quando tem de matar o líder de um grupo adversário no manicômio, descendo aos limites da agressividade, para interromper a escravização que este líder impunha.

Na volta à cidade completamente modificada pela cegueira, submetidos à simples satisfação de instintos primitivos e reificados pela alienação, os cegos vão como fantasmas anônimos percorrendo os labirintos urbanos, passando por estágios de profunda violência e barbárie. No entanto, ao recobrarem a visão, começa a parecer uma história doutro mundo aquela em que se disse, Estou cego[3] e os momentos críticos vividos enquanto estavam sem visão perdem-se da memória por causa da euforia de terem voltado a ver, o que bem pode apontar para a permanência da cegueira, não mais física, mas como um sinal de que a alienação continua presente entre os personagens.

Assim, no Ensaio sobre a Cegueira vemos, de forma surpreendente, como a crise gerada pela cegueira se move através da violência e da desumanização, fazendo com que os valores de igualdade e de respeito mútuo sejam deteriorados. O caminho para a cegueira pode ser configurado, portanto, através da submissão do homem às incoerências da opressão e da nova ordem instalada pela barbárie.

A não localização geográfica e a falta de demarcação temporal presentes em Ensaio sobre a Cegueira ampliam a abrangência da narrativa, pois a cidade fictícia pode ser uma representação de qualquer cidade onde imperam as contradições imanentes ao capitalismo avançado. Através dessa falta de referência espácio-temporal e do jogo entre desumanização e humanização presente na narrativa, Saramago convida o leitor a uma revisão de valores e a uma tomada de consciência a respeito da situação do homem enquanto cidadão do mundo. Isso porque, como vimos, na destruição da barbárie, é possível haver humanização por meio do resgate da memória, da solidariedade e por meio também da libertação das máscaras sociais, que alienam e aprisionam.

Bibliografia:

BUENO, André. Formas da Crise; estudos de literatura, cultura e sociedade. Rio de Janeiro:

Graphia , 2002.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 16ª ed. Rio de Janeiro: Editora Graal: 2001.

FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998

MARX, Karl. Manuscritos Econômico- Filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1963.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.


[1] MARX, Karl. Manuscritos Econômico- Filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1963.

[2] IDEM

[3] Ensaio sobre a Cegueira,p 310.

Barbárie e Humanização, no Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago

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