15 de julho de 2010 às 18:12
Os negros e a depressão nos Estados Unidos
Negros nos EUA: em plena depressão econômica
19/6/2010, Orlando Patterson (do Nation)
Tradução de Caia Fittipaldi
O mote do século 20, segundo o qual quando os EUA espirram o mundo já estaria com pneumonia, tem uma trágica expressão dentro dos EUA, nas condições econômicas relativas em que vivem os negros norte-americanos. O que para os brancos norte-americanos é hoje uma grande recessão, já é virtual depressão para número significativo de negros norte-americanos. O desemprego entre os negros chegou a 15,5% em maio, contra taxas nacionais de 9,7%. Para os negros, a situação já é quase tão desesperada quanto no ponto mais baixo da Grande Depressão dos anos 1930s: mais de um, de cada seis negros, está desempregado, contra taxa média de 9,8%; entre adolescentes negros, a maioria dos quais está fora da escola e busca emprego de tempo integral, a taxa de desemprego alcança terríveis 38%.
Os números do desemprego refletem apenas parte de um padrão mais amplo de disparidade socioeconômica entre brancos e negros nos EUA; quase todos os indicadores – de renda, de saúde, de formação profissional, de propriedade da moradia e de despejos – mostram a desigualdade sempre crescente e acentuada perda de alguns avanços dos anos 1990s, desigualdades que a Grande Recessão acentua de modo devastador. A renda média das famílias negras, por exemplo, a mais baixa dentre os principais grupos étnicos nos EUA, caiu 7,8% em relação ao ponto mais alto ($37.093) a que chegou em 2000, quando mal chegava aos 65% da renda média das famílias brancas. Os $34.218 em 2008 correspondiam a 61,6% da renda média das famílias brancas.
Ainda mais grave é o enorme aumento na disparidade entre o patrimônio das famílias negras e brancas nos EUA. Relatório do Institute on Assets and Social Policy mostra que o patrimônio familiar médio das famílias negras não aumentou ao longo dos últimos 25 anos e em 2007 era de $5.000; hoje é provavelmente ainda mais baixo, dado o impacto desproporcional que a crise das hipotecas teve sobre proprietários negros. Em 2007, o patrimônio médio das famílias brancas alcançava $100 mil dólares nos EUA, 20 vezes superior ao das famílias negras, com aumento de quatro vezes na disparidade, nesse período relativamente curto.
Mas o que mais chama a atenção, movimento exposto em vários relatórios e pesquisas recentes, é que a classe média negra nos EUA não está apenas perdendo espaço em relação a outros grupos; ela também, se comparada a outros grupos, não está conseguindo reproduzir os seus próprios valores. Em 2007, estudo da Pew Foundation/Brookings Institution revelou que a maioria dos filhos da classe média negra nos EUA ganha hoje menos que seus pais e – ainda mais alarmante – mais da metade dos filhos que não reproduziram o movimento de ascensão social dos pais já ocupam os degraus inferiores da tabela de distribuição de renda.
O que aconteceu? Como é possível que esteja acontecendo, numa nação que elegeu um presidente negro e celebra de pleno direito o movimento pelos direitos civis como uma das principais revoluções do século 20? O que foi feito do sonho do empoderamento econômico dos negros norte-americanos e da paridade econômica que teriam alcançado em relação aos brancos? Por que os negros nos EUA são tão inacreditavelmente vulneráveis a quaisquer ventos de recessão que soprem na economia norte-americana?
Para responder essa questão é preciso considerar o coração de um paradoxo profundo que acompanha a situação mutável dos negros norte-americanos ao longo dos últimos 50 anos.
O movimento pelos direitos civis, sabe-se hoje, foi sucesso importante na esfera pública da vida dos EUA. Da posição de virtualmente excluídos de todas as áreas da vida pública ao final dos anos 1950s, os negros norte-americanos chegam hoje a ser parte integrante do tecido político, cultural e cívico nos EUA. São fator decisivo de um dos dois principais partidos do país; estão plenamente integrados no corpo militar e já são mais de 10% dos oficiais do Exército; são muito mais influentes que os brancos, proporcionalmente à população, na cultura popular – música, esportes, teatro, dança, cinema e televisão. – E estão incorporados em posições de destaque no mundo público e corporativo em números mais significativos do que em qualquer outra nação de maioria branca do mundo, com números proporcionais mais significativos do que, por exemplo, no Brasil, onde há mais negros, em relaç o à população de brancos.
A eleição de Barack Obama é ao mesmo tempo culminação e eloquente testemunho desse processo e dessa realização dos negros norte-americanos na esfera pública.
Simultaneamente, ao lado desse sucesso histórico na esfera pública, está-se assistindo a um espantoso fracasso: os negros continuam a ser excluídos da esfera privada da vida dos norte-americanos. Excluídos dos círculos da elite branca, os negros são hoje segregados do domínio privado da vida dos brancos – dos bairros onde moram, das escolas que frequentam, das igrejas, dos clubes e de outras associações, das redes de amigos, do mercado de casamentos e das famílias –, tão segregados como há 50 anos. O fracasso da dessegregação pela escola conta parte dessa história trágica.
Relatório recente do Civil Rights Project da Universidade da California mostra que crianças negras e latinas vivem mais separadas hoje, das crianças brancas, do que em qualquer outro momento desde os anos 1960s: cerca de 40% das crianças negras e latinas frequentam escolas que são quase exclusivamente frequentadas por negros ou latinos. As instituições religiosas são tão segregadas hoje quanto nos anos 60s, quando Martin Luther King Jr. observou, em frase que ficou famosa, que as 11h das manhãs de domingo é o horário de máxima segregação nos EUA.
Essas duas formas de separação refletem uma fonte crucial de segregação pela cor de pele: a segregação por área de residência. Os EUA são tão segregados pela cor de pele hoje quanto sempre foram, e aumentam as áreas metropolitanas de hipersegregação dos negros: áreas nas quais os brancos vivem concentrados.
Em nenhum outro ponto vê-se mais claramente o paradoxo da integração pública e da exclusão privada dos negros nos EUA, que na evidência de que os pontos de mais alta segregação racial coincidem com as áreas metropolitanas mais liberais, justamente onde os negros ocupam funções públicas de mais destaque – na cidade de New York (onde o governador do Estado é negro), Chicago, Washington, Detroit, Los Angeles e Boston (onde o governador do Estado também é negro).
Um dos dogmas mais respeitados da ciência social liberal reza que a relação causal caminharia noutro sentido: a segregação – e o afastamento dos negros das escolas, instituições e relacionamentos brancos – seria resultado da desigualdade econômica e do racismo. Esses argumentos são rapidamente desmentidos por um simples fato: os norte-americanos negros de classe média e alta são tão segregados quanto os negros pobres e miseráveis das periferias das cidades. Os negros ricos vivem em guetos; os negros de classe média vivem em comunidades segregadas que se superpõem aos bairros onde vivem os negros mais pobres, e partilham com eles os serviços públicos insuficientes e os problemas sociais.
O que a segregação dos negros na esfera privada teria a ver com desigualdade social e a persistência dos problemas socioeconômicos? Há 17 anos, os sociólogos Douglas Massey e Nancy Denton trabalharam para argumentar que os cientistas sociais liberais haviam cometido erro muito grave, quando não deram atenção à segregação pela cor de pele como causa básica de não haver igualdade social entre negros e brancos nos EUA. Depois de algum ceticismo inicial, também já estou convencido de que estavam certos – e o argumento deles aplica-se ainda mais hoje, do que quando foi escrito.
Nos EUA modernos, como em todas as demais grandes sociedades industriais, o sucesso econômico é função de uma rede local e de acesso às capitais culturais, tanto quanto da escolarização formal. Conseguir emprego – como o sociólogo Mark Granovetter mostrou em seu trabalho pioneiro – é função tanto de quem você conhece, quanto de o quanto você sabe. E isso vale para os trabalhadores braçais, como vale também para quem busca emprego nas áreas gerenciais e de alta tecnologia.
Também contam muito as pesquisas de Pierre Bourdieu, sociólogo francês: a transmissão do capital cultural – o conhecimento muitas vezes tácito que se obtém da família e dos amigos e é reproduzido na socialização extracurricular das escolas da elite – é fator crítico para explicar a desigualdade e outras modalidades de distinção social. E a segregação por cor de pele nos EUA exclui os negros, precisamente, dessas redes sociais crucialmente importantes e do acesso a esse capital social. Esse traço, somado a um racismo sempre existente, mesmo que esteja em declínio, explica também por que os jovens negros de classe média e alta ainda ocupam os últimos lugares em aproveitamento escolar e sucesso nas carreiras, em comparação aos seus colegas brancos, nos EUA. Explica também a tragédia que é o persistente descenso em termos de mobilidade social, e a impossibilidade de os norte-americanos negros de classe média e alta reproduzirem os seus específicos valores.
As políticas públicas têm papel crucial contra essa persistente fonte de desigualdade social motivada pela cor da pele, nos EUA: políticas vigorosas de integração no campo da moradia; políticas vigorosas de inclusão orientadas para superar a crescente ressegregação pela cor da pele que se observa hoje nas escolas e universidades; e ênfase sempre renovada em leis que incentivem ativamente a inclusão de todos, sobretudo nas áreas de moradia e emprego.
Mas essa, de fato, é a parte fácil. Muito mais difícil, mas indispensável e igualmente importante, é o trabalho que cabe aos próprios negros norte-americanos: reavaliar algumas de suas políticas de identidade, as quais, às vezes explicitamente, quase sempre implicitamente, ensinam a desdenhar o papel decisivo das redes sociais de integração – de todas elas: das fracas e das fortes; das íntimas e das formais; das sexuais e das conjugais –; assim como ensinam a desdenhar a importância da plena socialização nessas áreas híbridas dos processos culturais norte-americanos.
Difícil encontrar exemplo mais claro da importância de os negros dos EUA aprenderem a buscar esse caminho alternativo, que o negro que, hoje, reside na Casa Branca.
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